As origens da moderna psicocirurgia podem ser achadas nas últimas décadas do século XIX, quando a ciência estava começando a entender como o comportamento e a mente humana podia ser mapeada nas estruturas anatômicas do cérebro. Um cientista alemão chamado Friederich Golz fez experimentos de ablação cirúrgica do neocórtex em cães, e relatou em 1890 que, quando os lobos temporais eram removidos, os animais ficavam mais dóceis do que os não operados.
Essas descobertas inspiraram Gottlieb Burkhardt, um médico e diretor de um asilo mental na Suiça, a operar em 1892 seis de seus pacientes esquizofrênicos, que tinham alucinações e ficavam muito agitados em conseqüência. Alguns dos pacientes realmente ficaram mais calmos, mas não seria possível dizer se isso foi resultado da operação (dois deles morreram). Burkhardt sofreu forte oposição e críticas de seus contemporâneos, por isso psicocirurgias desse tipo foram raramente realizadas nos 40 anos seguintes,
A situação começou a mudar quando na década dos 30s, vários laboratórios experimentais nos Estados Unidos fizeram várias descobertas impressionantes sobre o papel dos lobos frontais e temporais do cérebro no controle do comportamento emocional e agressividade. Na Universidade de Yale, em 1935, um cientista chamado Carlyle Jacobsen fez observações sobre o comportamento de chimpanzés após a destruição do córtex frontal e pré-frontal por meio de uma lobotomia. Um dos animais, que ficava muito agressivo em certas situações, ficou calmo e fácil de manejar depois da operação; sem que isso aparentemente causasse alterações em outras esferas mentais, como na memória e na inteligência. Um dos neurologistas experimentais de Yale, o Dr. John Fulton também comrpovou o efeito da remoção completa dos lobos frontais em dois chimpanzés, com os quais posteriormente não conseguia induzir mais um tipo de neurose experimental.
Em virtude disso, Fulton se tornaria um dos pilares científicos dos defensores da lobotomia nos Estados Unidos.
John Fulton
Tendo ouvido esses fatos relatados por Fulton em um congresso internacional em Londres,
um neuropsiquiatra português, o Dr. Antônio Egas Moniz,
professor de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, teve a idéia de realizar uma
operação semelhante de modo a aliviar os sintomas mentais severos em pacientes com psicoses intratáveis.
Egas Moniz sabia que certas psicoses, tais como a síndrome paranóide e as desordens obssessivo-compulsivas,
envolvem pensamentos repetitivos, que dominam todos os processos psicológicos. Baseado nos resultados de
Fulton, ele raciocinou que se cortasse as fibras nervosas que unem o córtex frontal e pré-frontal
ao tálamo (uma estrutura localizada no meio do cérebro, e responsável por transmitir as informações
sensoriais para o neocórtex. Este modo, ele achava que poderia ocorrer uma interrupção nos
pensamentos repetitivos, permitindo que o paciente psicótico levasse uma vida mais normal.
Antônio Egas Moniz
Moniz, trabalhando com um colega neurocirurgião, Dr. Almeida Lima, desenvolveu então uma abordagem cirúrgica que ele denominou de leucotomia ("corte da substância branca"). Ele abria uma série de orifícios no crânio, por onde passava um instrumento chamado leucótomo de fio, Realizando movimentos de lateralidade, ele cortava as fibras, e o paciente podia se recuperar rapidamente. Moniz relatou os resultados com alguns poucos pacientes. Pacientes que eram gravemente agitados, ansiosos ou deprimidos tinham mostrado bons resultados em alguns casos, enquanto que em outros não se obtivera sucesso. Moniz foi cauteloso em propor que a leucotomia deveria ser utilizada somente quando o caso não tivesse mais nenhuma esperança de tratamento por outros meios.
Depois que Egas Moniz e seus colegas relataram seus resultados ao mundo (simultaneamente em seis países), em 1936; vários centros começaram a tentar a nova cirurgia. No Brasil, o notável cirurgião Mattos Pimenta, da Escola Paulista de Medicina, em São Paulo, foi um dos que realizou a nova cirurgia de Moniz, com resultados duvidosos.
Assim, provavelmente a leucotomia prefrontal provavelmente se extinguiria por si só como procedimento médico (Moniz se aposentaria cedo, devido ao fato de ter levado um tiro na espinha de um ex-paciente, tendo ficado paraplégico), poucos anos depois de ter sido inventada. Muitos psiquiatras eram terminantemente contra ela, principalmente os psicanalistas.
No entanto, um neurologista clínico americano muito ambicioso, chamado Walter Freeman,
compareceu ao mesmo congresso de Londres que Egas Moniz, e posteriormente leu seus resultados em uma publicação.
Fascinado coma idéia e os resultados obtidos, ele se uniu a um neurocirurgião, James Watts, para
aplicar a nova técnica a pacientes americanos. Eles operaram pela primeira vez em setembro de 1936. Após
alguns casos, eles estavam convencidos que a leucotomia funcionava, e começaram a fazer uma intensa propaganda
da mesma. Freeman encontrou suspeição e resistência por parte de seus colegas, no início,
mas ele insistiu muito, e eventualmente ganhou a aprovação relutante da elite dos neurologistas americanos.
Ele e Watts aperfeiçoaram a técnica cirúrgica, chegando ao que eles denominaram "Procedimento
Padronizado de Freeman-Watts", que continha um conjunto preciso de orientações para melhorar
a inserção do leucótomo.
Walter Freeman
Freeman era muito bom no que tange a convencer a imprensa e o público em geral sobre o potencial da lobotomia prefrontal (como ele achou melhor denominar), e quase que sozinho foi responsável por estabelecê-la como um procedimento terapêutico válido, visitando, dando aulas e operando em centenas de sanatórios mentais, hospitais e clínicas psiquiátricas em todo o país. No entanto, insatisfeito com a duração excessiva e a complexidade da cirurgia padrão, Freeman inventou em 1945 uma técnica desenvolvida por um italiano, que consistia em realizar um acesso ao lobo prefrontal através da órbita do olho, que era trepanada e depois inserido o leucótomo. Freeman inventou uma forma muito mais rápida e simples, usando um quebra-gelo, um instrumento pontiagudo, ao invés de um leucótomo, que necessitava da trepanação. Sob anestesia local, o quebra-gelo era apoiado no teto da órbita, e com uma leve pancada de um martelo, atravessava pele, tecido subcutâneo, osso e meninges, chegando ao lobo prefrontal. Com um movimento lateral de 30 graus, as fibras eram desconectadas. Isto não tomava mais do que alguns minutos, e não era nem mesmo necessário internar o paciente em um hospital. O procedimento era tão impressionante, no entanto, que mesmos neurocirurgiões veteranos não agüentavam observar, e alguns chegavam a desmaiar ao testemunhar a verdadeira "linha de produção" montada por Freeman em alguns hospitais. Watts ficou agastado com o novo tipo de operação e rompeu com Freeman.
A lobotomia invadiu os Estados Unidos como uma enchente, assim como alguns outros países. Ela foi realizada em larga escala nos anos 40, devido ao grande número de casos psiquiátricos trazidos pela II Guerra Mundial. Entre 1939 e 1951 foram realizadas mais de 18,000 lobotomias nos EUA, e dezenas de milhares mais em outros países. Ela foi amplamente abusada, na forma de um instrumento para controlar o comportamento indesejável e para esvaziar os hospitais superlotados (fazia sentido econômico, pois custava uns 250 dólares, contra um custo de 35.000 dólares ou mais, por ano, para cada paciente internado). Assim, traiu-se a recomendaçào de Egas Moniz, de usá-la apenas em casos desesperantes, como um último recurso. No Japão, por exemplo, a lobotomia foi muito usada com crianças com problemas de conduta ou de mau desempenho escolar. Prisioneiros em hospícios judiciais foram operados em grande quantidade. Famílias que queriam se livrar de parentes incômodos, eram submetidos à lobotomia. Dissidentes políticos e oponentes eram tratados como doentes mentais pelas autoridades, e operados. Apareceram até cirurgiões amadores, que realizavam centenas de lobotomias sem sequer fazer um exame psiquiátrico antes.
Em 1949, o Dr. Antônio Egas Moniz recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, por sua contribuição à leucotomia prefrontal. Isso teve um efeito enorme sobre o procedimento, tornando-o internacionalmente respeitável. Nos três anos seguintes ao Nobel, foram realizadas mais lobotomias que em todos os anos anteriores.
Finalmente, no começo dos anos 50, começaram a se ouvir as primeiras vozes discordantes contra a loucura lobotomizante. Não estavam sendo apresentadas evidências científicas sérias sobre a eficácia real da lobotomia. Até mesmo os defensores da lobotomia admitiam que apenas um terço dos pacientes melhoravam. Outro terço ficava na mesma, enquanto o terço final piorava ! (considerando-se que de 25 a 30 % dos casos psiquiátricos melhoram espontaneamente, uma grande proporção dos lobotomizados poderia ter se recuperado sem ela). A única avaliação de larga escala foi feita nos EUA apenas em 1947 (o projeto Columbia-Greystone) e não demonstrou efeitos positivos claros da lobotomia. A maioria das vezes, os trabalhos publicados eram muito falhos, pois a avaliação era feita pelos próprios cirurgiões que operavam, sem nenhum tipo de controle científico.
As objeções éticas começaram a se acumular, devido ao dano irreversível causado ao cérebro, e tambem devido aos sérios efeitos colaterais sobre a personalidade e a vida emocional dos pacientes, que começaram a ser relatados. Além disso, o aparecimento de novas e eficazes drogas antipsicóticas e antidepressivas, como a torazina, nos anos 50, estava tornando possível o combate aos sintomas mais sérios das psicoses em pacientes agitados e incontroláveis. Os neurocirurgiões abandonaram a lobotomia a favor de métodos mais humanos de tratamento.
As preocupações com respeito à proteção dos pacientes contra a lobotomia e terapias radicais semelhantes, particularmente em prisioneiros cuja libertação era trocada pela concordância em ser operados (uma oferta extremante convertida, injusta e desbalançada), traduziu-se no surgimento de leis nos Estados Unidos e em outros paises, nos anos 70. A psicocirurgia passou a ser considerada um tratamento experimental, e como tal, sujeita a muitas restrições e salvaguardas com relação aos direitos dos pacientes.
A operação original de lobotomia não é mais realizada. embora muitos países ainda aceitem a psicocirurgia como uma forma de controle radical do comportamento violento patológico, entre os quais o Japão, a Austrália, a Suécia e a Índia. Até mesmo na ex-União Soviética, a terra do abuso psiquiátrico, a lobotomia foi proibida, não porque não fosse útil para controlar os oponentes do regime comunista (eles usavam outros métodos, como o confinamento compulsório), mas devido a um posicionamento ideológico contra a mesma.
De: A História da Psicocirurgia Autor: Renato M.E. Sabbatini, PhD Em: Revista Cérebro & Mente, Junho 1997 |